terça-feira, 29 de setembro de 2009

O TRANSPORTE PÚBLICO LIQUIDA COM AS CASTAS

Recebi esta resportagem de uma amiga através do email do grupo do Comitê pela Mobilidade Sustentável em Belo Horizonte, e achei muito interessante. Gostaria de ter postado antes, mas é muito interessante, então compartilho com vocês.

O TRANSPORTE PÚBLICO LIQUIDA COM AS CASTAS

Charles Correa

04/09/2009

Entrevista concedida a Anatxu Zabalbeasco, e publicada em El País, edição de 14 de março de 2009, sob o título "Los autobuses urbanos logran abolir las castas".

Tradução: Mauro Almada

"Para os japoneses, o Monte Fuji é sagrado; mas para os suíços, o Monte Branco é apenas uma montanha bem alta. E esta diferença, apresenta uma importância decisiva em suas formas de viver". O arquiteto indiano Charles Correa (n. Hyderabad, 1930) esteve recentemente em Madri para apresentar seu livro Um lugar à Sombra, editado pela Fundación Caja de Arquitectos. Nele, Correa analisa a importância do 'sagrado' na Arquitetura. "O 'sagrado' é o aprofundar-se em algo. É parar para pensar. No passado, os arquitetos conheciam cada centímetro de suas obras. Hoje, no entanto, reduzimos a Arquitetura ao ato de subir num avião e fazer um croqui. Construir se torna algo compulsivo se não analisamos por que se traça cada linha". Ele mesmo trabalhou nos EUA e em Portugal. "Não desejo parecer nostálgico. Acredito que a Arquitetura sai ganhando quando Norman Foster constrói 90 edifícios numa década. E isto se dá, porque 90% dos arquitetos constroem pior que ele. Mas me pergunto o que ganha Foster com isso. Concentrando as decisões arquitetônicas em poucas mãos, a sociedade perde a possibilidade de encontrar soluções diversificadas".

Correa ganhou quase todos os prêmios: do Imperial à Medalha de Ouro do RIBA – Royal Institute of British Architects –, passando pelo Prêmio Aga Khan. Construiu o Memorial de Mahatma Gandhi em Ahmadabad, a Assembléia do Estado de Madhya Pradesh e, nos anos 60, uma cidade para 2 milhões de habitantes, no porto de Bombay: Navi Mumbai¹.

Apesar disto, continua interessado naquilo que é mais básico na Arquitetura: a habitação. "Você assistiu ao filme Slumdog Millionaire² ? Se vivesse em Bombay, com 10 milhões de pessoas morando mal, entenderia que por que me preocupo com a habitação. As cidades em geral, ainda que apresentem grandes vantagens, não proporcionam uma 'pobreza digna'. No campo, uma pessoa, por mais pobre que seja, não se desumaniza. Na cidade, sim", ressalta ele.

Como manejar 10 milhões de pessoas – 60% da população de Bombay – vivendo em condições sub-humanas ? "Forçando vários Centros. Se as pessoas continuam chegando a setores distintos de uma mesma cidade descentralizada, ela funcionará como uma 'soma de cidades'. A Índia possui muitas cidades grandes e, cada uma delas, vários Centros. É isto que as transforma em lugares onde há esperança". Mas que esperança ? "A cidade é o lugar onde todos chegamos em busca de uma nova vida. Nas cidades indianas, o povo viaja em ônibus parecidos com os de Londres. Neles, se encontram e convivem, o sujeito que lava pés e o prestamista, oriundos de camadas sociais distintas. Numa aldeia, jamais chegariam sequer a se falar. Mas no ônibus urbano, têm que se sentar lado a lado. Gandhi tentou abolir o sistema de castas, mas foi o ônibus urbano – sem intenção política – que o conseguiu".

Após estudar nos EUA, Correa regressou a seu país e Rahid Gandhi o nomeou Presidente da Comissão Nacional de Urbanização: "Não senti que estava fazendo um sacrifício. Ao contrário, encontrei um sentido [razones] para minha profissão. Como arquiteto, pode ser que não soluciones o problema de 10 milhões de pessoas. Mas buscando a solução, cresces. O quanto pode alguém crescer, fazendo um edifício de escritórios de 40 andares ?"

Correa surpreende com os matizes. Frente à urgência de seus trabalhos, defende também o supérfluo. "É uma maneira de celebrar a vida. Julgar a moda como um assunto moral é um erro". Mas ao anseio [anhelo] humano pela surpresa, contrapõe saber onde coloca-la: "Se lhe preparo um curry², não lhe agradará levar à boca uma navalha de fazer barba [cuchilla de afeitar]. Muitas das surpresas atuais consistem em fazer edifícios que parecem estar desabando. Como erguer um edifício 'deconstruído' em Beirute, onde se sofre com bombardeios contínuos ? Seria obsceno", acrescenta. Correa acredita que os arquitetos estão se intrometendo em lugares que "não nos pertencem": "O que vamos pensar, se um dia virmos um engenheiro desenhando uma ponte, onde as pessoas pareçam tropeçar [caerse] ? Que essa profissão está enferma. A loucura pode funcionar em Literatura, mas nós – engenheiros, arquitetos e médicos – devemos agir [debemos actuar]".

NOTAS DO TRADUTOR

1. Sobre a cidade nova de Navi Mumbai, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Navi_Mumbai.

2. Slumdog Millionaire [no Brasil, Quem Quer Ser um Milionário?]: filme britânico, lançado em 2008, baseado no livro Q and A, do escritor Vikas Swarup. Roteirizado por Simon Beaufoy e dirigido por Danny Boyle, apresenta um elenco estrelado por Dev Patel e Freida Pinto. O filme arrebatou, em 2009, 8 Oscars e 4Globos de Ouro. Na estória, o personagem Jamal Malik, de 18 anos, morador de uma favela em Mumbai, está prestes a conquistar um prêmio de 20 milhões de rúpias, na versão indiana do programa televisivo de perguntas e respostas Who Wants To Be A Millionaire? No limiar da última etapa, no entanto, a polícia o prende por suspeita de fraude. Tentando provar sua inocência, Jamal conta a história de sua vida nas ruas, as aventuras com seu irmão, e a estória de seu amor perdido, Latika. A grande dúvida é: "O que faz um rapaz sem ambições monetárias num concurso televisivo ? E como pode ele saber todas as respostas ?" Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Slumdog_Millionaire.

3. Curry: tempero apimentado, de origem indiana.

FONTE: Revista eletrônica ViverCidades http://www.vivercidades.org.br/publique_222/web/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1512&sid=19

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